Já que a escrita é salvação, resolvi abrir uma tela em branco para tirar a prova.
Se a escrita é uma forma de não morrer, não custa tentar ver qual é a dela. Eu escrevo isso fingindo ingenuidade, porque eu sei qual é. Eu escrevo relendo, editando, só para prolongar mais o processo e não deixar que as palavras soltas entreguem o que eu não quero: eu mesma.
Se escrever é liberar o fluxo do inconsciente e da bagagem de vida por meio de palavras, eu tô perdida. Não só eu como todo o mundo. Não existe inconsciente organizado, não existe bagagem sem bagunça. Tudo está misturado e emaranhado em um bolo de fantasias, histórias e montagens.
Eu escrevi esses tempos sobre não ter rosto, não ter identidade. E isso não no sentido de liberação do ego, de alguma transcendência. Foi querendo dizer sobre não me sentir encaixada na minha própria existência, de ser um rosto e um corpo com contornos leves e borrados, que se mistura facilmente com outras coisas e se transforma, transforma, transforma. Sem encaixe no corpo ou no espírito. Sem contorno definido. Sem nada.
Uma pessoa dessa, afinal, estaria morta, não? Se não tem encaixe no corpo e no espírito, morreu. Morreu a morte mais morrida, que nem na quarta ou quinta dimensão está. É daquelas mortes definitivas, onde a consciência vaga eternamente pelo universo, se unindo novamente às estrelas e a tudo o que é.
Mas se eu estivesse tão morrida assim, não haveria desejo. E enquanto houver desejo, há vida. Foi uma fagulha de desejo que me fez escrever no trabalho coisas que eu não intencionava escrever. As palavras foram saindo através dos movimentos da minha mão com a caneta, totalmente fora de controle. Elas eram arremessadas, e sabemos que depois do arremesso, não tem volta. Ficaram pairando naquela folha em branco – eu as olhava como se estivessem flutuando. Não entendia o que estava escrito ali, como eu pude escrever aquilo, de onde vem, pra onde foi. Saiu. Hoje, meses depois, eu olhei e entendi: era o desejo de uma morta-não-tão-morta-assim falando mais alto. Escapando pela caneta.
Enquanto houver desejo, há vida. Eu lutei contra isso, porque a morte parece menos difícil. Entendi que não. Por mais que a ideia da morte possa ser um afago para alguém, a vontade de vida sempre fala mais alto. Enquanto há sangue circulando, o coração vai bater em um ritmo que diz pul-são, pul-são, pul-são.
A pulsão é uma explosão que quanto mais guardada no âmago do ser, mais poderosa fica. Foi assim que ela escapou da minha caneta na mesa de trabalho. As palavras não foram exatamente essas, mas na essência, era isso aqui: estar ali me aproximava da morte mais morrida, aquela que você fica morta em vida.
Mas enquanto houver desejo, há vida. E foi assim que eu fugi daquele lugar, morta, para voltar a viver.
Que sempre haja desejo e pulsão ❤️