Me peguei entrando no Google e digitando: ‘a partir de qual dia, ano e horário as pessoas não poderão mais ter relações monogâmicas?’
Quando Natália Sousa, jornalista e escritora, disse essa frase em um episódio do seu podcast Para dar Nome às Coisas, eu quase engasguei com o primeiro gole de café que eu dava naquele dia. Era uma manhã quente de quarta-feira, e eu já comecei o dia sendo tomada por pensamentos que também estavam ardentes dentro de mim.
A Natália tem o dom de promover encontros com a sua escrita – um encontro com o que existe de mais profundo no outro. E nesse episódio ela conseguiu me tocar em uma parte que tem me deixado incomodada e confusa nos últimos dias: o modo como eu e as pessoas à minha volta nos relacionamos.
Para dar um contexto melhor sobre o cenário, apresento a parte de mim que cabe aqui: sou uma mulher de 31 anos, divorciada e sem filhos. Moro sozinha e tenho minhas ocupações – escrevo, danço, cuido da minha casa, leio, vejo meus amigos, vou a cafés, trabalho, faço exercício físico, vejo séries e procuro um amor.
Assim que eu digitei “e procuro um amor”, já me subiu um frio na espinha. Essa sensação vem acompanhada de duas presenças fortes na minha vida, que de tanto que me visitam, se tornaram palpáveis: o medo do julgamento dos outros e do meu próprio.
Quando a Natália fez a piada que citei no início do texto, ela partiu de um lugar que eu tenho me visto muito inserida como mulher solteira no ano de 2022. Um lugar onde as relações estão muito mais plurais, com diversas possibilidades de configurações, conjecturas e manejos. E dentro dessas possibilidades, duas que estão muito popular atualmente é a poligamia e o relacionamento aberto.
Pesquisando sobre a diferença entre essas duas formas de se relacionar, vou parar num site chamado ‘Mulheres Bem Resolvidas’. Já sinto novamente o desconforto dentro de mim.
Porque eu sou monogâmica eu sou mal resolvida, é isso? Eu sou uma retrógrada, conservadora, careta e desinteressante?,
vociferei para a tela do computador, desafiando o site das “mulheres bem resolvidas” falarem na minha cara o que elas pensavam de mim.
Respirei fundo. Vamos lá, focando menos na nóia e partindo para as definições agora. Segundo o artigo:
Poliamor significa ter mais de um relacionamento íntimo, amoroso, sexual e duradouro simultaneamente com várias pessoas, com o pleno consentimento e conhecimento de todos os envolvidos. A pessoa que se considera emocionalmente capaz de entrar nesse tipo de relação é chamada de poliamorosa.
O relacionamento aberto já é um pouco diferente, ainda segundo o site:
… é uma espécie de acordo entre duas pessoas que estão em um relacionamento afetivo (embora também possa ser meramente sexual), em que ambos reconhecem que querem estar juntos. A relação é saudável; no entanto, eles querem ter contato (quase sempre sexuais) com outras pessoas.
Estar em um desses dois tipos de relacionamentos não quer dizer pegar geral, pelo o que andei lendo e também por conversas que já tive com diversas pessoas que escolhem essa forma de se relacionar. Aliás, algumas dessas pessoas relataram transar menos do que quando estavam em relacionamentos fechados.
Relacionamento aberto não é, necessariamente, oba-oba. Existem regras bem definidas dentro deles também, e os acordos precisam estar bem alinhados – assim como o nível de maturidade de ambos – para que as coisas fluam bem e ninguém saia machucado.
A QUEDA DO AMOR ROMÂNTICO
Essas novas formas de se relacionar foram chegando de mansinho, mas é uma tendência que anda fazendo mais barulho a cada dia que passa. A psicanalista, pesquisadora e escritora Regina Navarro Lins, autora de doze livros sobre relacionamento amoroso e sexual, consegue explicar muito bem o porquê.
Regina tem mais de 20 anos de experiência na clínica e começou a notar um fenômeno interessante de uns cinco anos para cá. Em seu consultório começaram a aparecer casais com um conflito que ela nunca tinha visto na vida: uma das partes propunha a abertura da relação, enquanto a outra se desesperava, arrancava os cabelos. Isso começou a acontecer com tanta frequência que lançou o ‘Novas Formas de Amar’, com o objetivo de abordar e esclarecer as novas tendências.
E se você nunca leu um texto da Regina Navarro Lins, não viu nenhum de seus vídeos no YouTube ou nunca assistiu a nenhuma de suas lives no Instagram, te digo que está perdendo um conteúdo inteligente, divertido e urgentemente atual. O tema que ela traz cabe a todos os seres humanos cujos corações continuam batendo: o amor e a evolução cultural das relações.
Vendo o material da escritora, podemos ver que o problema não está na monogamia, no relacionamento aberto ou na poligamia. O grande X da questão, o grande vilão que ferra a coisa toda, é o tal do amor romântico.
Quem aí nunca ouviu aquela música Alma Gêmea, do Fábio Júnior, o “grande romântico” (que, aliás, já se casou sete vezes):
Carne e unha
Alma gêmea
Bate coração
As metades da laranja
Dois amantes, dois irmãos
Esse amor é calcado na ideia de fusão de dois em um só, numa completude onde nada mais no mundo seria necessário para viver – apenas a pessoa amada bastaria para uma vida plena.
Eu não sei como vocês se sentem, mas eu acho essa ideia bem esquisita. Como, num mundo com 7,8 bilhões de pessoas, apenas uma tem absolutamente todos os requisitos para nos suprir emocionalmente? Mesmo se tivessem apenas 100, 10 pessoas no mundo todo. É mesmo realista (ou até mesmo justo) colocar o peso da nossa felicidade e realização em apenas uma relação?
Isso me lembra as vezes que ouvi algum casal chamando o parceiro ou parceira por ‘vida’. Eu sempre achei aquilo problemático, desde os meus 16 anos, quando ouvia uma pessoa próxima da família chamar o marido dessa forma. Amor, amorzinho, lindeza, chuchu, meu bem, gata – todos esses são apelidos expressam carinho e afeto. (Eu, particularmente, gosto de ser chamada de ‘deusa do ébano’. Brincadeira. Mais ou menos). Mas ‘vida’? É colocar na outra pessoa o peso da sua própria existência.
A crítica a essas pequenas coisas são necessárias, mas não dá para julgar. Todos nós nascemos, fomos criados e ainda vivemos o amor romântico, uma construção social que começou no século 12 e foi ficando mais forte no século 18, se perpetuando por muito tempo e sendo completamente exaltado nos anos 40, com o cinema hollywoodiano. As consequências dele vemos na sociedade até hoje: um amor carregado de fantasias e delírios, com direito a shows constantes de ciúmes, controle e perda da individualidade.
Segundo Regina, a crítica não é ao ato de mandar flores e chocolates, e sim aos ideais e expectativas que esse amor alimenta. Ele é calcado na idealização e em outras fantasias mirabolantes, como a fusão de dois em um só, a ideia de que teríamos todas as necessidades atendidas pelo outro e a ilusão de que quem ama não deseja mais ninguém sexualmente.
Apesar de condicionados e ludibriados pelo o que o amor romântico nos vende através de música, publicidade, novelas, cinema e produtos – a promessa que seremos amados incondicionalmente e que teremos todo o controle e segurança do mundo –, hoje estamos um pouco mais espertos.
Estamos tendo mais “experivivências”, como diz um amigo. Com a sociedade hoje vivendo uma vida mais plural, temos a oportunidade de experimentar e viver coisas que antes não eram possíveis, ou eram grandes tabus.
A busca pela individualidade é uma característica contemporânea. As pessoas querem descobrir suas possibilidades e potencialidades, e o modelo antigo vai na contramão disso, já que ele prega a fusão, a junção das metades das laranjas.
Se o amor romântico é calcado no desrespeito a individualidade do outro, na possessividade, no controle e no ciúme, um modelo – ou vários modelos – novo de amor vem a galope com um grito de liberdade: a liberdade de ser quem se é, sem precisar se esticar e nem se espremer para caber em um lugar que não é o nosso.
ESTAMOS PREPARADOS?
Um vídeo da Jout Jout aparece como sugestão no meu feed do YouTube. Era um vídeo dela no canal da GNT falando sobre relacionamentos abertos, porque aparentemente é o assunto que rodeia a minha vida agora. Para quem não conhece, Julia Tolezano da Veiga Faria, mais conhecida como Jout Jout, é uma vlogueira, escritora e jornalista que conquistou mais de 2 milhões de brasileiros com seus vídeos sobre diversas questões atuais.
Nessa última reflexão, Jout Jout salienta como nós, seres humanos, não atingimos o nível de consciência adequado para ter mais de um relacionamento por vez. Segundo ela, isso se deve ao fato de que “ainda não aprendemos uma coisa muito importante para poder incluir mais gente, que é ser integralmente verdadeiro com todos os seres com quem você se relaciona”. Ela segue expondo conversas com amigos, nas quais chegou a conclusão de que em relacionamentos com mais de uma pessoa são expostas apenas meias-verdades, e não o cenário completo das relações para todas as pessoas envolvidas. Melhor, então, uma pessoa por vez.
Ela segue dizendo que isso já é uma evolução – de “uma pessoa para a vida toda” para “uma pessoa por vez’ já é um baita pulo”. E futuramente, talvez, teremos a capacidade de termos relacionamentos com duas pessoas por vez, depois três, depois quatro, e cinco...
UMA BALANÇA, UM PESO
Depois de três dias trocando áudios com uma pessoa que dei match no Tinder, eu encerrei o assunto dizendo “olha, você é legal, mas eu cansei de falar sobre isso”. Claro que o assunto era essa tal nova forma de se relacionar.
Eu amo conversar sobre qualquer tema e não fujo dos assuntos difíceis – eu que geralmente os trago à mesa, na verdade –, mas do que eu cansei mesmo aquele dia foi do mesmo discurso que eu ouvi das duas últimas pessoas com as quais eu me envolvi.
Tem uma pequena brecha, uma falha na fala que elas trazem. Não usam exatamente esses termos (às vezes usam), mas é mais ou menos assim: “não quero relacionamento sério, o que eu vivo hoje são amizades coloridas”. Até aí tudo bem, não há falha nenhuma nisso. É um jeito legítimo e ótimo de se relacionar. Transar com pessoas que são suas amigas – ou seja, tem a parte do afeto, da troca de algumas confidências, do carinho – parece ser a melhor saída nos tempos modernos, de fato. A equação é, mais ou menos:
Quero viver a minha individualidade com toda a potência que ela tem, quero explorar as possibilidades que o mundo me apresenta. Porém, ainda sou um ser humano com necessidades afetivas – preciso de toque, preciso do estímulo do outro, preciso me sentir amado. Por isso, para não ficar apenas no campo da troca sexual, vou também trocar uma relação de amizade, de afeto, com as pessoas com as quais transo, mas sem isso implicar um compromisso de exclusividade.
Legal, né? Eu acho muito bacana. O que me incomoda disso tudo não é essa forma de se relacionar. O que verdadeiramente aperta o meu calo é que quando essas mesmas pessoas escutam a outra também se posicionando, mas de um lugar que diz “procuro um relacionamento sério”, o estranhamento é muito maior.
Essa frase é sempre seguida de um olhar de desconfiança, como se eu viesse de outro planeta. Não demora muito para vir o discurso sobre como somos doutrinados a seguir apenas esse modelo, como nos fizeram uma lavagem cerebral e etc, etc, etc.
Isso quando não falam que isso é ser “emocionado demais”.
Tudo o que quero dizer nessas horas é
Meu bem, eu sei. Eu leio Regina Navarro Lins, eu tenho pensamento crítico, eu reflito e discuto sobre esses assuntos, eu já vivi outras formas de relação para além da monogamia, eu faço análise.
Relaxa que eu não tô te pedindo em namoro, não – eu nem te conheço. Quando eu digo que quero ter um relacionamento sério, não é necessariamente com você. Talvez seja, talvez não. Calma, respira. A gente só tá se conhecendo.
O susto que o meu posicionamento traz é maior do que quando escuto da pessoa sentada na minha frente na mesa de um café que ela vive relacionamentos abertos.
Então o que me incomoda não, não é o fato do outro ficar com duas, três, cinco pessoas ao mesmo tempo. O que me deixa intrigada é o incômodo do outro ao me ouvir dizer que quero construir um relacionamento amoroso com apenas uma.
E a tal da brecha que eu encontrei no discurso ‘amizade colorida’ é uma inconsistência de posicionamento. Em três conversas que eu tive com pessoas que dizem preferir estar em relações plurais, sem exclusividade, no final acabaram revelando que se acharem “a pessoa certa”, topariam um relacionamento “fechado”.
Ora, ora, o que vejo aqui, meus senhores…
Seriam monogâmicos enrustidos? Seriam pessoas confusas? Vai saber. Eu só sei que pensando nisso enquanto eu fazia uma pausa da escrita desse texto, picando um mamão para lanchar, eu quase cortei meu dedo no instante em que um insight afiado veio.
Será, então, que para sabermos qual a nossa posição nos relacionamentos precisamos saber sobre os nossos desejos mais profundos? Sobre o que realmente queremos da vida, onde queremos nos ver daqui a 20 anos, como gostaríamos de envelhecer.
Não são perguntas fáceis de serem respondidas porque a maioria de nós vive à deriva, navegando pelos acontecimentos da vida sem precisar se responsabilizar pelas nossas escolhas – “vivi isso porque a vida aconteceu desse jeito”. E quando surge uma pessoa que se posiciona de uma maneira mais concreta – “desejo ter um relacionamento” –, o susto vem.
Como continuou Natália Sousa naquele episódio do Para dar Nome às Coisas, quanto mais nos conhecemos, quanto mais sabemos o que faz sentido para a nossa realidade, mais ficamos em paz conosco e com a nossa própria história.
E quando estamos em paz com a nossa história, estamos em paz com nossos limites, nossa subjetividade – o que consequentemente faz com que a gente fique em paz com a subjetividade alheia. No momento que honramos nossos limites, entendemos também o limite do outro. Isso faz com que ao invés de vermos a diferença como uma ameaça a nossa existência, começamos a encarar a pluralidade de visões, valores e ideais como o que ela verdadeiramente é: apenas a história e a bagagem que cada pessoa traz consigo.
LIBERDADE É PODER ESCOLHER
No fim das contas, qualquer tipo de relação nos tempos de hoje, sejam ele monogâmico ou não, duas coisas são imprescindíveis: liberdade de escolha e individualidade.
A primeira nos garante senso crítico e respeito à nossa história. Nenhum tipo de relacionamento precisa ser compulsório, acontecendo apenas porque uma norma social diz que tem que ser dessa maneira. A única coisa imprescindível é aquilo fazer sentido dentro da história e do momento das duas (ou mais) pessoas envolvidas.
Já a noção de individualidade faz com que não nos percamos no labirinto que é o universo do outro, e nem da possibilidade de viver a vida com toda a potencialidade que ela traz. Podemos, dentro de relacionamentos abertos ou fechados, ter “experivivências” variadas, relações de amor e afeto e diversas outras realizações pessoais.
Ao contrário do que prega o amor romântico, precisamos de várias colunas para sustentar uma vida que traga contentamento emocional – amigos, relações, trabalho, lazer, projetos pessoais –, e não colocar isso tudo na conta do nosso parceiro ou parceira amorosa.
Depois de toda essa reflexão ter sido materializada em texto, sinto agora que posso escrever com mais segurança:
Sou uma mulher de 31 anos, divorciada e sem filhos, moro sozinha e tenho minhas ocupações – escrevo, danço, cuido da minha casa, leio, vejo meus amigos, vou a cafés, trabalho, faço exercício físico, vejo séries e procuro um amor.
Um amor da forma que eu escolher querer viver, de acordo com as minhas possibilidades e limites atuais.
Nossa, esse texto me fez pensar em tanta coisa, coisas que já vivi e outras que ainda são desconhecidas.. obrigada por isso!!!
Sensacional, Gabi!!! Tudo isso estava entalado no meu peito também, me senti compreendida...