Passei um tempo sem publicar porque achei que não tinha nada de interessante a dizer. Minha cabeça andava a mil, mas eu não conseguia externalizar em forma de palavras coesas – falada ou escrita – o que estava acontecendo.
A tendência imediata é tentar achar um culpado.
“É por causa do trabalho. Ele anda exigindo demais.”
“É por causa de alguma expectativa não concretizada.”
“É por causa da rotina pesada da vida adulta.”
“É por causa da mentalidade neoliberal que permeia todos os discursos e ações das pessoas ao meu redor.”
“Os astros estão desalinhados – sou sensível e sinto tudo.”
E tudo isso é real. As coisas acontecem na vida adulta numa complexidade mais desafiadora do que no período da infância ou adolescência. Mas é o que crescer pede: lidar com as coisas como elas são.
(Antes de continuar esse texto, preciso falar que minha intenção aqui não é lançar um discurso coach e nem uma fala 100% espiritualista. Eu também disse para mim mesma que não ia falar tanto sobre política. E nem de forma acadêmica e difícil. Bom, melhor nem escrever então, né, Gabriela? Se for pra ficar colocando trava no jeito que você escreve ou conceitos de certo e errado ao expôr o que você pensa, fecha o notebook e fica aí matutando essas coisas na sua cabeça, oras!).
Perdão, gente. O texto foi invadido por um superego fortíssimo. Vou tentar fazer com que ele fale mais baixo pra eu conseguir falar sobre vida adulta, amadurecimento e brincadeira com vocês.
Vamos lá?
SOCIEDADE DO CANSAÇO
Eu me senti impostora de mim mesma quando não consegui escrever. Eu me conheço e me reconheço escrevendo – não escrevo, logo, não existo.
A culpa veio. “Ué, mas você não ama escrever? Você não tá vivendo a sua maior paixão! Você tá deixando esse amor morrer. Essa é a única coisa que te deixa viva. Você tá morrendo. Você tá deixando isso pra trás por pura preguiça. Não tem mais vida dentro de você – e você deixou isso acontecer.”
Era isso que a voz interior não muito gentil me falava. Mas ei, peraí! A vida estava correndo solta.
Eu continuava trabalhando oito horas por dia. Eu continuava indo à academia na hora do almoço. Eu continuava fazendo uma boa faxina em casa aos domingos. Eu continuava pagando o aluguel e outras contas da casa todo quinta dia útil do mês. Eu continuava a preencher todas as caixinhas do checklist da vida.
Quando me vi apenas dando check em caixinhas – e nada além disso – por pelo menos um ano, sem pausa, uma conta inesperada chegou: a do extremo cansaço. Tudo virou uma lista de demandas infinita, e quanto mais se fazia, mais se tinha a fazer.
Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano e professor da Universidade de Artes de Berlim, elucida muito bem o que aconteceu comigo e com milhões de pessoas ao redor do mundo em seu livro A Sociedade do Cansaço. Ele fala sobre o ponto máximo do ‘fazer’ que a sociedade chegou hoje. Não há mais barreiras, não há mais regras, não há mais limites: a globalização está aí e o mundo é todo nosso para fazermos acontecer.
Mas fazer acontecer o que?
Hoje estamos fadados a uma árdua e incrível tarefa: sermos nós mesmos. Mas não no sentido espiritual e essencial da coisa – nananinanão! Está mais pautado no discurso econômico e político neoliberal da coisa.
Segundo Byung, hoje somos sujeitos de desempenho e produção. Não somos mais a antiga sociedade disciplinar, onde a coerção era feita pelo outro, pelo externo. Somos empresários de nós mesmos. O discurso neoliberal que impera é sedutor porque nos dá uma sensação de poder e liberdade. “Alcance a sua melhor versão”; “você pode ser o que quiser se trabalhar duro para isso”; “as possibilidades são infinitas e o poder está em suas mãos!”.
Se a regra de hoje é a de que o nosso ser está preso a um sentido mercadológico de valor – você é quanto você ganha, o que você veste, o bairro onde mora, o emprego que tem, sua posição social –, e vivemos em um mundo globalizado e cheio de possibilidades, é o nosso dever alcançarmos a nossa “melhor versão” para fazer valer estarmos vivo.
Se no meu ser essencial minha fala é não escrevo, logo, não existo, na sociedade do desempenho na qual vivemos hoje a regra é não me esforço para chegar no topo, logo, não existo. O fazer virou uma religião na qual somos os próprios deuses, super-homens, ou como diz Nietzsche, o homem soberano. Apesar de sermos divindades na sociedade do desempenho, acredito também que obedecemos a um deus maior.
Com vocês, um discurso habitual do Deus-Dinheiro (também conhecido como Deus-Capital):
“Ei, você. Você mesmo! Você não é feliz, né? Não, eu sei que você não é… você quer mais. Ei, relaxa, relaxa, eu sei! Pode me dizer, na boa. Você quer tudo. Quer ser respeitado pelas pessoas. Quer se sentir a pessoa mais cool do seu escritório. Quer que seus amigos invejem a vida que você leva. Quer que as mulheres caiam em cima de você. Quer ser desejada por todos os homens. Quer que o mundo te fale o quanto você é especial. Você quer chegar no topo. Não quer? Quer chegar lá no alto pra gritar em bom som pra quem tá embaixo: me olhem, eu tenho valor! Eu consegui chegar no topo e vocês não! Eu sou especial! Eu tenho valor, eu tenho valor, EU TENHO VALOR!’. E você pode conseguir isso, viu? Claro que pode. É até clichê eu dizer, porque esse papo todo já é bem conhecido, mas vamos falar sobre o preço disso tudo. O preço é a sua morte. Nossa, calma, não precisa fazer essa cara! Deixa eu terminar de falar. Você vai morrer em vida! A sua energia vital inteira vai ser canalizada para o fazer. Faz, faz, faz, sem nenhum minuto de paz. Você vai conseguir algumas coisas que quer assim. Você não vai ter força pra aproveitar muitas delas, mas quem se importa? O importante é eles verem o seu valor. Foco, o objetivo aqui é fazer! Sem pausa nem descanso. Viver? Pra quê?! Relaxa que o tempo de viver vem – quando o seu corpo físico desfalecer e você nascer em outra dimensão. Aí sim: vida!”
99,9% da humanidade concordou com a fala acima e ainda assinou embaixo sem nem ler as letras miúdas. Somos seduzidos pelo Deus-Dinheiro. Seu poder e influência trazem a embriaguez de um vinho demi-sec barato, que pela embalagem promete uma experiência incrível para todos os nossos sentidos, mas na realidade só entrega a pior ressaca da vida. Byung afirma em A Sociedade do Cansaço:
“O explorador é ao mesmo tempo o explorado. Agressor e vítima não podem mais ser distinguidos. Essa autorreferencialidade gera uma liberdade paradoxal que, em virtude das estruturas coercitivas que lhe são inerentes, se transforma em violência.”
Somos nossos próprios carrascos na sociedade do desempenho porque é pela nossa força de vontade, de fazer, que provamos nosso valor. E ao passo que fazemos isso, damos nossa energia vital para forças que nos levam para o caminho do “infarto da alma”, como bem diz Byung.
O discurso que impera na sociedade do desempenho é perfeito porque quem está verdadeiramente no poder não precisa mais coagir ninguém. Nós viramos nossos próprios exploradores, e quem ganha é quem chegou no topo não exatamente pelo fazer, mas pela hierarquia estrutural do poder.
USANDO O CANSAÇO A NOSSO FAVOR
Consegui tirar alguns poucos dias do trabalho. Até aceitar que o que eu realmente precisava era descansar, levou um tempo. Primeiro, uma viagem para Minas Gerais foi frustrada. Depois, o ficar em casa inquietante ainda me fazia viver momentos dentro da agência de publicidade onde trabalho.
Quando eu dormia, eu sonhava que estava trabalhando. Acordada, eu pensava nos jobs, se tinham sido aprovados ou não pelos clientes. Pensava nos colegas de trabalho. Eu trabalhava mesmo não estando fisicamente naquele local, e mesmo sem estar ativamente trabalhando.
É exatamente isso que a sociedade do desempenho provoca: o excesso do fazer não nos torna mais ativos – é exatamente o contrário. O fazer passivo se instaura porque qualquer ação se torna automatizada. Fazemos compulsivamente, sem ter outra escolha. Somos escravizados pela ação. Byung vai além e diz que a hiperatividade é um sintoma de esgotamento espiritual, precisamente porque não conseguimos parar e sentir o que realmente precisamos fazer.
Meu cérebro demorou um pouco para entender o que meu corpo já sabia: o que fazia sentido naquele momento era simplesmente descansar. Obedeci. Aos poucos – e falhando às vezes –, meu fazer foi saindo do automatismo e eu pude tanto descansar o corpo, quanto agir conforme o meu espírito. Tomei sol no quintal, cozinhei meus pratos preferidos, fiz yoga na minha sala todos os dias, deitei e observei as folhas na varanda, li muito, olhei para o teto por uma hora. Passei a me sentir novamente.
No fim de uma das sessões caseiras de yoga, continuei um tempo deitada no tapete de exercício. Lembro de estar de bruços e de, de repente, fixar meu olhar no meu pulso direito. Levei um mini susto quando notei um movimento involuntário – que que é isso se mexendo aqui, eu me perguntei, curiosa. Era a minha veia pulsando. Ela pulava ritmada, fazendo a vida funcionar no meu corpo involuntariamente, querendo eu ou não.
O que mudou ali foi ter notado que havia vida para além das checklists. Existia vida ali no tapete de yoga. Comecei a entender que a ação do espírito vem do não-fazer. E o não-fazer nem sempre tem a ver com não-ação – tem a ver com fazer algo de acordo com o corpo e a alma pedem. Byung afirma:
“Se, desprovidos da potência negativa de não perceber, possuíssemos apenas a potência positiva de perceber algo, a percepção estaria irremediavelmente exposta a todos os estímulos e impulsos insistentes e intrusivos. Então não seria possível haver qualquer “ação do espírito.”
Decidi ali que precisava fazer algo (um fazer consciente) para não sofrer um infarto da alma. Meus poucos dias de folga estavam acabando, e eu não sabia se eu teria tempo hábil para mudar tudo o que eu precisava transformar dentro de mim.
Sem nem perceber, eu ainda estava na mentalidade do fazer compulsivo – porque ele não tem noção de processos. Ele não entende que a forma leva tempo.
O NÃO-FAZER DÁ TRABALHO
Me imaginei em uma sala com outras milhares de pessoas com o mesmo problema me apresentando:
“Olá. Meu nome é Gabriela e eu sou viciada em fazer.”
É verdade que a vida adulta nos engole vivos. A roda do sistema gira cada vez mais depressa, mais globalizada, e a gente vai se perdendo nas milhões de informações e possibilidades infinitas. Sem limites ou contorno, o esgotamento vem.
Em uma sociedade onde a ação compulsiva é valorizada, a contemplação definha – e é isso que nos faz adoecer. Anestesiados pelo fazer, morremos sem nem sentir, como um sapo que é colocado na panela de água fervente e não consegue pular fora da cilada. Quando percebe, já é tarde demais.
Sentir dá medo. Podemos entrar em contato com feridas não curadas, lutos mal resolvidos, angústias, solidão e extremo desamparo. Ao entrarmos em contato com o que nos faz humanos vivos, podemos sentir uma dor imensa.
Eu às vezes congelo de medo. Ele me paralisa, e o fazer automático, como fuga, é a única coisa que me resta. Eis aqui o que tem me ajudado a descongelar: lembrar que na vida – e no sentir – há nuances. Não é preto no branco, 8 ou 80. Há espaço para o êxtase, mas também para o contentamento. Para o ódio, mas também para a intensidade impulsionadora. Para a tristeza, mas também para a percepção calma das coisas como elas são na realidade.
O não-fazer dá trabalho. Sentir dá trabalho. Mas são as únicas coisas que nos humanizam.
O sistema pode nos engolir e podemos entrar no automático novamente a qualquer momento. A solução para sair sem grandes complicações disso tudo – depressão, TDAH, crises de pânico – é se entregar ao sentir e reencontrar o prazer do brincar.
Estou me rendendo à primeira parte nesse momento. A segunda, vou treinar mais e conto aqui para vocês. Afinal, escrevo, logo, existo.
Arte: Jaco Putker