“Trouxe uns livros pra você, são a sua cara!”
Meu ex-marido chegou em casa no horário habitual e antes mesmo de me dar um beijo que dizia “tô em casa”, me entregou dois livros: Writing the Natural Way, da Gabriele Lusser Rico, e The Writer’s Journey, de Christopher Vloger.
Ele continuou:
“Agora tem um lance novo lá no trabalho, uma caixa onde a galera deixa livro pra doação. Vou separar alguns daqui de casa também.”
Ele acertou em cheio na seleção de livros que trouxe para o nosso apartamento da época, num condomínio bege, igual a todos os outros de Orange County. Ambos falavam sobre escrita, e ambos me acompanham até hoje, seis anos depois de fazerem oficialmente parte do meu acervo.
Quando eu penso no meu gosto pelo assunto, não consigo acessar exatamente quando a escrita começou a fazer parte da minha vida. A única coisa que consigo afirmar é que ela sempre esteve presente – e se é isso que a mente consegue alcançar, eu vou acreditar que a escrita começou fazer parte da minha vida quando comecei a fazer isso com intenção.
A nossa história e bagagem de vida nos faz ser quem somos, por mais clichê que possa soar. No meu caso, o combo infância solitária e estrutura familiar caótica me fez uma pessoa com imaginário inflado para dar conta de segurar aquela barra, criando um universo particular cheio de livros, diários e música.
Apesar da escrita poder ser mais facilitada para algumas pessoas devido a sua própria bagagem de vida, essa habilidade é mais natural do que pensamos e pode ser muito útil quando precisamos de ferramentas para acessar nossa voz e poder de expressão.
Por onde anda a tal ‘voz autêntica’?
A necessidade de dar forma às nossas experiências, segundo Gabriele Lusser Rico, é inerente ao ser humano e a base de toda a escrita. A Ph.D. em Inglês e Creative Arts, escritora do Writing the Natural Way, segue dizendo que poucos de nós continuamos dando vazão a essa necessidade. Ao longo da vida, desistimos de sustentar uma relação com a linguagem e expressão própria, inibidos pelo peso de tantas regras e prescrições.
O receio de colocar nosso temperinho único no mundo se estende a outras formas de expressão – canto, dança, pintura, performances e etc –, mas vou focar na escrita aqui por alguns motivos: 1) porque esse texto precisa de um limite; 2) por ser um lugar que visito diariamente; e 3) por todos nós – ou a grande maioria – sermos introduzidos a essa maneira de expressão desde muito cedo.
Conseguimos ver a leveza que é viver sem tantas amarras em crianças, e é exatamente por isso que elas conseguem ser encantadoras (a maioria, pelo menos): o mundo é menos pesado e a liberdade de ser quem se é não é uma batalha diária, e sim a única forma possível de existir.
Acompanhando esse modo “mais livre” de viver, vem a atitude de curiosidade e desbravamento que temos na infância. A sensação de que a cada passo que dermos há a possibilidade de uma nova descoberta faz com que a vida seja sempre interessante, renovável.
Mas já sabemos o roteiro: quanto mais a vida acontece, maior a tendência da nossa subjetividade e expressão serem engolidas por um mundo cheio de padrões e normas a serem seguidas.
Quando acessamos a expressão mais livre e a passamos para uma página em branco, somos transportados para o mesmo lugar da criança – um universo com diversas possibilidades, onde nossa autenticidade, emoções e verbos podem correr livremente, desembocando em caminhos novos e construindo estruturas sólidas onde nossa voz pode habitar sem medo.
As duas fases do ato criativo
Ainda segundo Gabriele, o primeiro passo em direção a esse lugar de liberdade de expressão é estar consciente da natureza dual do nosso cérebro: um lado pensa de forma mais conectada com um todo, e o outro vê tudo como sequências lógicas.
É interessante observar que qualquer processo criativo passa por diferentes fases. Geralmente, a primeira é o famoso “toró de ideias” (brainstorming, para os faria limers), o momento em que conseguimos deixar a imaginação fluir sem nenhum (ou pouco) filtro. Depois da chuva, vem o momento de ajeitar o terreno para que as ideias sejam editadas, refinadas e estruturadas.
A autora de Writing the Natural Way fala sobre algumas pesquisas que mostram que o lance é real: o hemisfério esquerdo do nosso cérebro é comandado pela lógica e racionalidade. Ele tem a habilidade de ordenar sequências lógicas, como a formação de frases coerentes para nos comunicarmos. Ele é o crítico-mor: corrige qualquer desvio e define as coisas de maneira bem marcada – ou é ‘preto’ ou é ‘branco’, não existem nuances (oi, superego, é você?).
Já o lado direito se mostra mais flexível. Ele desenha imagens complexas, criando padrões mais variados do que encontra. É quando nossa imaginação corre solta e consegue enxergar nas nuvens um dragão soltando fogo da boca, ou ver de longe um tronco de madeira e visualizar um cachorro deitado tranquilinho observando a paisagem.
Temos, então, dois moradores peculiares na nossa cabeça: o caótico, que faz ligações inesperadas e vê as formas tão flexíveis quanto uma massinha de modelar, e o organizador, que é mestre em editar, polir e estruturar o caos.
O mais comum de acontecer é o lado esquerdo querer aparecer mais, justamente por vivermos em uma sociedade onde um certo padrão é mais bem visto. A racionalidade excessiva permeia nossos relacionamentos, trabalho e criações.
Poderia falar sobre isso por mais umas três páginas, mas vou guardar a militância do sentir para algum outro texto. Meu ponto aqui é, já que temos essa duplinha constantemente na cabeça, por que não usá-la a nosso favor?
A melodia deve vir primeiro
Fica fácil fazer um paralelo com a vida quando pensamos no processo da escrita. Temos caos à nossa volta: inúmeras possibilidades, variáveis, caminhos, direções, situações, objetos. De acordo com nossa estrutura e condição internas, vamos definindo o que nos aparece – primeiro formando padrões, deduções e janelas pelas quais vemos o mundo, e depois, usando nossa racionalidade, analisamos tudo e colocamos em algumas caixinhas (umas mais flexíveis, outras nem tanto).
E assim vão nascendo as melodias da vida. Se o lado direito do cérebro nos mostra uma melodia abstrata, o lado esquerdo nos fornece as notas para montar a composição.
Na hora de nos expressarmos através da escrita a lógica é a mesma. Antes de organizar uma estrutura, várias ideias de ritmo vêm antes de nos decidirmos por um em específico. Uma ferramenta que mudou a forma como eu escrevo veio desse livro que meu ex-marido me trouxe há 6 anos atrás. Writing the Natural Way ensina uma técnica chamada clustering (agrupamento, em tradução livre), que nos ajuda a colocar o “toró de ideias” no papel, linkando elementos e ajudando a ver um caminho em meio ao caos.
Gabriele explica que clustering é parecido ao processo de associação livre. Ele materializa o que acontece no lado direito do cérebro (que ela denomina Design Mind), colocando para fora, com o mínimo de filtro possível, associações que permitem que padrões venham à tona. Através dessa técnica, continua a autora, colocamos no papel múltiplos caminhos de uma parte do nosso cérebro que processa experiências de uma vida inteira. Nessa parte do processo, não precisamos nos preocupar com coisas do tipo “pra onde esse texto tá indo?”. O que manda aqui é o desbravamento, o não-saber.
O monstrinho do controle pode aparecer nesse momento. Como em qualquer trabalho de criação, é comum querermos entregar o nosso melhor. E quando pensamos em entregar o nosso melhor, associamos a tudo milimetricamente pensado e calculado. O interessante é entender – e o clustering ajuda nessa compreensão – que nesse momento inicial do ato de criar, forçar o nascimento de uma ideia traz mais bloqueio que fluidez. Ao invés de pensarmos uma estrutura já pronta, o mais construtivo a se fazer nessa etapa é aceitar o não-saber e aproveitá-lo da melhor maneira: explorando as inúmeras possibilidades e acessando nossa liberdade de expressão.
Usando a ferramenta
Primeiro, é importante entendermos que a técnica de agrupamento não é um mero ‘soltar palavras aleatórias’. Gabriele explica que a associação de palavras feita pelo hemisfério direito do cérebro segue sua própria lógica, mesmo que não faça sentido algum para a parte metódica da nossa cabeça. As conexões que são feitas nesse momento tem mais a ver com a complexidade das imagens e características emocionais ligadas a elas. Quando as colocamos no papel, conseguimos perceber nas palavras um caminho, um padrão que poderá nos levar a uma estrutura.
A citação que a autora faz de outro livro sobre escrita, do crítico literário Northrop Frye, me encantou e, para mim conseguiu definir bem a técnica de agrupamento:
“Any word can become a storm center of meanings, sounds and associations, radiating out indefinitely like ripples in a pool.”
Em tradução livre, “Qualquer palavra pode se tornar o centro de significados, sons e associações, sendo irradiadas indefinidamente, como ondas em uma piscina.”
O passo inicial da técnica, então, é começar com uma palavra-núcleo, ou frase-núcleo da sua escolha. Ela precisa ser escrita com papel e caneta (ou lápis) da sua escolha, com espaço para “ramificações” (ou ondas, lembrando do ‘ripples in a pool’). A gente vai lançar uma pedrinha (palavra-núcleo) no mar de possibilidades, e ela vai reverberar em diversas outras ondas.
A autora dá o exemplo do exercício de uma estudante:
O texto ficou assim:
“Letting go of one’s children happens inch by inch over the years, so that when it finally happens, that last quarter inch is not hard. Letting go of anger is a giant rebounding from the intensity of my anger, lifting me up with the air, weightless, rocking me softly as feathers sprung loose, rushing me along like blossoms in the spring wind, dropping me as gently as snowflakes falling. Letting go of past dreams and hopes requires more effort, but I can do it, and once I’ve taken that icy plunge, there’s nothing like the invigoration of it, and nothing like pushing off from shore into the deeper waters, slowly rolling over on one’s back and getting that sun-slanted view of mountains and arching sky. But letting go of pain is a mirror image of me. I look at pain, and I see me up, scowling, brows, furrowed into an angry slash across the face. When I feel pain, I turn to hold and comfort that child. But she is voracious, comfortless, and all my holding on does no good. She is the worm in the center of my universe.”
A palavra-núcleo letting go teve conexão com diversos elementos encontrados no hemisfério direito do cérebro – com poucos filtros e sem uma ligação lógica, mas com um sentido e padrão que só essa parte da mente entende. Ao serem passados para o papel, os elementos podem ser organizados com a ajuda do nosso amigo do lado esquerdo, resultando em um texto estruturado.
Ao ver o processo de agrupamento e depois de estruturação do texto da aluna, conseguimos entender como faz sentido os dois hemisférios trabalharem juntos, e não brigando para ver quem aparece mais. Me veio a analogia de um concerto – nós, escritores, sendo os regentes dessa orquestra mental, trabalhando em grupo para apresentar uma bela sinfonia.
Na etapa de agrupamento, é importante tentar deixar a mente o mais livre possível, sem permitir que a rigidez da nossa parte racional nos pegue para dar uma lição sobre lógica. Ele vem só depois. Por hora, confie no processo natural da criação – caos, conexões, claridade do caminho e, só então, estruturação.
Quanto mais você fizer esse exercício, mais fluida fica essa brincadeira de associação livre, e se expressar de forma autêntica fica cada vez mais natural. Funciona para diversos tipos de textos – diários, conto, crônica, dissertação, artigo, carta – ou até para outros tipos de expressões criativas. Eu fico maravilhada toda vez que faço isso; parece que acontece algum tipo de mágica quando colocamos palavras no papel, com caneta mesmo. O que me vem é que esse movimento aplica uma energia só nossa, que vem da coroa da nossa cabeça até nossas mãos, desenhando, letra por letra, uma mensagem capaz de atravessar uma pessoa – seja ela nós mesmos ou outra(s) –, acessando outras dimensões.
É preciso reajustar rotas no caminho
Toda vez que abro esse livro de 1983, seja para consulta ou para fazer algum exercício, eu penso como preciosidades existem, como essa possibilidade de acessar conhecimentos tem o poder de mudar vidas.
Para mim, além de reforçar um contato muito íntimo que eu já tinha com a escrita, Writing the Natural Way me deu mais uma ferramenta para acessar minha expressão natural de forma mais rápida. Ela põe a parte crítica do cérebro, o controle, mais no lugar dele, dizendo, “fica de boa, cara, espera sua vez. Vai fluir, confia.”
E não é que dá para levar o agrupamento para a vida? Se o guardarmos na nossa caixa de ferramentas, ele pode ser um baita aliado quando percorremos nosso caminho – principalmente quando há muitas incertezas e variáveis (aliás, existem momentos em que esses elementos não estejam em cena?). Quando precisamos fazer uma travessia sem saber o que há do outro lado, quando o não-saber ficar tão pesado a ponto de nos paralisar no caminho para o nosso próprio desejo, podemos parar, definir uma palavra-núcleo e agrupar. Agrupar todo o caos que a situação traz. A partir daí, podemos redefinir caminhos, ajustar rotas e continuar na direção que a alma pede.